quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Por aqueles olhos *


“Quando tu olhares nos olhos de outra pessoa e vir tua própria alma refletida neles, então tu vais me dar razão”, foi o que dissera sua amiga quando ele debochara da sua nova paixão. Aí ele relembrou, pela milésima vez naquele dia, dos olhos dela. Olhos inquietos, incertos. Olhos verdes. Da mesma cor dos olhos dele. No momento que ele os viu, naquele segundo irreal ele soube, por uma dessas estranhas sensações tão difíceis de explicar, que ali estavam os olhos que fariam parte dele de forma intensa e decisiva.

Eles já se conheciam há algum tempo. Se conheceram em uma festa, trocaram telefones. Não era namoro, não era caso, nada. Nenhum dos dois queria um relacionamento sério: chegaram à conclusão que eram amantes. Ela disse que sempre gostara daquela expressão: amante. “Namoro é compromisso demais, já imagino jantando em casa, papai e mamãe do lado.... amante é melhor, não acha?” Ele achou.

Tudo ia muito bem, tudo ia muito bom. Ela era uma garota legal, como tantas outras. Bonitinha, como tantas outras. Inteligente como poucas. Sensual como poucas. E arredia como só ela. Se ele ligava muito, ela sumia por dois, três dias. Não atendia o telefone, não dava qualquer sinal de vida. Quando reaparecia e ele perguntava o que ela andara fazendo, ela apenas dizia que ele não gostaria de saber. E apesar da curiosidade, bem no fundo, ele sabia que realmente preferia não saber.

Então o relacionamento deles era isso: não eram namorados, tampouco amigos. Ele pensava nela quando passava por uma livraria e lembrava que ela adorava ler. Ela lembrava dele quando passava por um cinema e lembrava que ele gostava de filmes alternativos.

E em um dia desses de lembranças, num fim de tarde clássico de outono, com o sol se pondo, ele resolveu caminhar pelo parque. Passara o dia todo pensando nela, um pouco mais que o normal. Talvez fossem os muitos livros que precisava ler para as aulas que reavivaram a lembrança dela: “se ela me visse reclamando de ter que ler tudo isso, iria ler e me contar depois”. E enquanto via pequenos pássaros bebendo água nas poças formadas pela chuva, refletia sobre ela. Pensava sobre ele. Juntava os dois e imaginava como seria o ‘nós’. E fantasiava que não somente os amores concretizados, mas também os amores platônicos, aqueles jamais consumados, as amizades não tão sinceras... todos modificaram a existência dele, com todos aqueles ardentes sentimentos que teimavam em se mostrar a todo instante.

E ele se deu conta que em todas essas vezes ele passara a construir e a viver ingênuas fantasias, ilusões sobre o mundo e os relacionamentos, que o faziam tão pateticamente feliz! E se deu conta que vivia tudo novamente. Mas daí pensava porquê não vivê-las. E se respondia que possivelmente o risco oferecido não compensasse a mágoa que aconteceria.

E entre uma árvore e outra do parque ele tomou a decisão: falar com ela. Ia decidir que diabos de caminho esse relacionamento tomaria. Dessa vez ele seria ‘homem de verdade’ e iria tomar satisfações com ela. Ah, se ia!

E ele foi. Foi atrás dela, decidido a dizer tudo que há tanto tempo estava trancado dentro do peito.

A noite estava chegando, e ele sabia exatamente onde ela estaria: sentada na mesa mais ao fundo do bar, lendo. Foi até lá, tremendo. Poucos metros antes do tal bar já tinha a completa certeza que tinha enlouquecido, e perdia totalmente a coragem.

Pensava isso, mas inconscientemente ainda caminhava para dentro do bar, os pés o levavam ao encontro dela. A cena seguinte foi ela erguendo os olhos por cima dos óculos, deixando o livro de lado e olhando para ele, com a expressão mais tola de toda sua vida.



-          Sabe que eu tinha a impressão que ia te encontrar hoje? Por isso resolvi...

-          Espera, eu preciso falar – ele interrompeu. Tu não tem noção do que tem sido esse último mês, desde que te conheci. A única coisa que eu consigo pensar, desde o segundo que eu acordo, é em ti. Tu tá me deixando louco. Porque eu quero te ligar mas sei que tu não vai atender aí eu fico com o telefone na mão decidindo se ligo ou não aí eu começo a digitar os números e desligo na metade aí eu penso “que idiota!” aí eu começo de novo desligo de novo até que finalmente eu consigo terminar todos os números aí tem aquele segundo terrível sabe? quando ainda não tem som nenhum nem toca nem fica ocupado nem nada aí nesse segundo eu sempre desligo, aí eu ligo de volta aí quando finalmente toca eu entro em parafuso de novo, porque se toca muitas vezes e tu não me atende eu fico pensando que tu não quer falar comigo e quando atende e dizem que tu não tá eu penso que tu não dá a mínima pra mim e quando tu me atende... ah, aí tu nem sabe, eu fico tão feliz que nem consigo falar nada porque já esqueci porque tinha ligado, sabe?

Ele termina e fica olhando para ela, com a absoluta certeza que foi a coisa mais estúpida e imbecil que já disse em toda a vida. Ela esconde um sorriso e diz:

-          Olha, acho que tu não tá conseguindo te explicar direito. Eu tenho que encontrar uma amiga, quem sabe a gente se encontra mais tarde, eu dou uma passada na tua casa, lá pelas oito e meia, e tu pensa direitinho o que quer me dizer, ok?

E aí ele tem certeza que sabe porque se apaixonou por ela. Porque só ela poderia entender que ele não disse o que queria, e lhe dá mais uma chance. E a felicidade de compreender por que ela é tão especial para ele, junto com a vergonha de ter feito papel de idiota só o deixam dar um sorriso sincero e concordar com a cabeça. Ela se levanta, e sai. Ele não consegue esconder o sorriso, e sai vitorioso, planejando tudo que diria quando a visse naquela noite.

Já em casa, ele sai do banho, vai para o quarto escolher a melhor roupa para vestir, olha o despertador e se assusta: ela deve chegar em pouco mais de meia hora! Esquece a roupa, corre pelo apartamento, tenta dar uma arrumada na bagunça da sala, empurra o gato que teima em se enroscar em suas pernas, abre as janelas para tirar o cheiro de apartamento trancado. Decide que nem que todo o prédio abra as janelas o ar vai mudar. Liga o ventilador, para acelerar o processo, e acende um incenso. Termina de juntar as roupas espalhadas pela sala, pega o gato e joga tudo na lavanderia. Volta para a sala. Chega à conclusão que um único incenso não adianta. Vai até o quarto de novo (20:35), escolhe o velho e bom jeans e camiseta. Perfume – a casa pode ter cheiro de gato e mofo, mas pelo menos eu vou estar cheiroso!. Arruma o cabelo com as mãos. Lembra que deixou o gato sem comida nem água e corre para resgatá-lo. Passa os olhos pela sala, tudo parece bem. Até que o incenso funcionou! Cinco para as nove. O telefone toca.

-          Alô? Oi, sou eu. Âhm, olha só, eu não vou poder ir até aí. Desculpa, tá? É que eu acabei demorando com a minha amiga, e não tenho como chegar até aí a essa hora. Mas eu sei que tu queria falar comigo, e eu acho que sei o que tu queria me dizer. Ãhm... tu tá me ouvindo? Ah tá, é que a ligação tá ruim. O que eu acho que tu queria me dizer é que tu tá querendo alguma coisa mais séria, não é? Bom... eu acho que não fui muito sincera contigo. Acho que eu devia ter dito desde o começo que não queria nada sério, devia ter sido bem clara, e não fui. Pra mim era só diversão, sabe como é? Eu gosto muito de ti, mas não posso te enganar que pra mim era só passatempo. Âhm.. alô?? Oi?  Ah... tu é muito legal, eu tenho certeza que tu vai encontrar alguém que seja....

Ele desliga o telefone. Não a deixa terminar. O gato mia, ele o chama. O felino nem parece ouvir, vai sinuosamente em direção ao quarto e desaparece. Ele desliga as luzes. Deita no sofá, decide dormir ali mesmo. E igual a todas as noites desde que a conhecera, ele lembra dos olhos verdes dela. Da mesma cor dos olhos dele. E ao lembrar, ele decide: amanhã é outro dia. Amanhã eu ligo pra ela, ela vai me ouvir. É que eu não consegui dizer bem o que eu queria, aí ela não entendeu nada, mas eu vou pensar direito e falo tudo certinho, ela não vai conseguir dizer que não. Eu sei, ela também sente o mesmo por mim, só não quer admitir, tem medo que eu fique chato, pegando no pé dela... mas amanhã eu planejo tudo, vou mais uma vez até lá e dessa vez e consigo dizer o que quero. Amanhã...

* mais um da série revival, de outubro de 2005

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